sábado, novembro 18, 2006

A Cruz

Antes de saber quem era realmente Jesus só o conhecia pendurado numa cruz. A Cruz. A chave da salvação, objectivo último da vinda do Messias, desenlace final do Plano Divino. Ou então não.

Qual é o significado da Paixão de Jesus? De acordo com a maioria dos cristãos, é "o sacrifício por todos os seres humanos de todos os tempos. Com sua morte, todos nós podemos ser perdoados e salvos."

Nunca percebi isto. Nem antes nem depois de conhecer Jesus, nunca percebi. Salvos de quê? Do Inferno? Como é que a morte do suposto filho de Deus salva seja quem for da ira divina? Porque é que a simples fé na divindade de um homem que morreu numa cruz me confere perdão automático? Se durante toda a vida eu for a pior pessoa à face da terra, se matar, roubar e explorar, como é que vou automaticamente para o Céu se no último segundo antes da morte começar a acreditar que ele era mesmo o Messias?

Jesus falou várias vezes com os discípulos sobre a importância do perdão. Devemos perdoar não sete vezes mas sete vezes setenta vezes. Cada vez que o ofensor disser "arrependo-me", merece o seu perdão. Este é um bom ensinamento. Consigo entender que através de um arrependimento sincero se seja absolvido e se ganhe o Céu, mas fé na Cruz não implica, pelo menos directamente, este arrependimento.

Posso dar um exemplo de um católico muito famoso. Como era católico, provavelmente tinha fé na Cruz e na salvação que daí advinha. Chamava-se Hitler. Será que ele está no Céu? E aqueles padres todos da Inquisição? A esses fé na Cruz não lhes faltava, estão no Céu concerteza.

Sabemos que os judeus tinham por norma sacrificar animais no altar para se purificarem dos seus pecados, e pareciam achar que Deus gostava disto. Mas Jesus disse, "aprendam o significado das Escrituras: Eu quero que sejam misericordiosos; não desejo os vossos sacrifícios" (Mateus 9, 13). Se Jesus falava verdade e os sacrifícios não são válidos para atingir a pureza, então tem alguma lógica substituir esses sacrifícios animais por um sacrifício humano? Ambos são sacrifícios de sangue e, segundo Jesus, ambos ficam aquém do bom coração no que toca à pureza espiritual.

Se Jesus só veio à Terra para morrer, porque é que não morreu logo em vez de gastar 33 anos a fazer outras coisas? Porque é que se deu ao trabalho de falar a milhares de pessoas e de lhes ensinar coisas contrárias às leis da altura (Lei de Moisés, supostamente Palavra Divina)? Seria muito mais lógico que nessas ocasiões Jesus falasse da sua origem divina e do sacrifício que estava prestes a fazer.

Vejamos o Sermão da Montanha, ocasião em que Jesus reuniu um número extraordinário de pessoas na sua audiência. Aí, Jesus discursou sobre o que é certo e o que é errado. Curiosamente, não disse nada sobre sacrifícios divinos, nem sobre ele próprio. Estava ali uma oportunidade perfeita para dizer: "Acreditem em mim e no meu sacrifício! O meu sangue, derramado na Cruz por todos vós, será a vossa Salvação!". Mas Jesus não disse nada disto. O que ele disse foi: sejam bons, puros de coração, pacíficos, misericordiosos.

Naquele dia Jesus disse às pessoas aquilo que ele achava ser realmente importante. Não referiu a Cruz, nem directa nem indirectamente.

Outra coisa que Jesus disse, e que é até uma das minhas frases preferidas em toda a Bíblia, é "Porque me chamam Senhor, Senhor, e não fazem o que eu digo?" (Lc 6, 46). Jesus não estava interessado em que o idolatrassem. Ele queria ser ouvido. O importante não é ter fé que Jesus é Senhor mas sim acreditar nas coisas que ele disse, e pôr os seus ensinamentos em prática. A Cruz não existe na Mensagem de Jesus.

Uma boa parábola que ilustra o mesmo ponto é a parábola do Bom Samaritano, o único homem a ajudar um ferido à beira da estrada quando os judeus que passaram antes dele não o fizeram. Jesus incita os seus discípulos: façam o mesmo. Jesus diz aos judeus que sigam o exemplo de um samaritano, o que hoje em dia seria equivalente a dizer a um cristão que segua o exemplo de um muçulmano. Ao contar esta parábola, Jesus confirma que a fé não é relevante, mas as acções são. Aquele samaritano que não tinha fé em YHWH seguia a Mensagem de Jesus mais do que os Judeus que dedicavam a sua vida a Deus.

Até na Última Ceia, onde Jesus falou mais directamente da sua morte, o seu discurso foca um ponto central: "É isto que vos mando: que vos ameis uns aos outros." (João 15, 17)

Jesus falava de Amor e de Paz. Este é o verdadeiro Caminho, Verdade e Vida. É uma mensagem importante, e acredito que quem a traz no coração já está salvo de todas as agonias deste mundo. O Reino de Deus não é algo transcendente, não existe no Céu. Jesus disse, "o Reino de Deus está dentro de ti" (Lc 17, 21). Um Jesus morto não é chave para este Reino, mas a sua mensagem viva sim.